quarta-feira, 28 de setembro de 2011
Sabor das cores e os buracos no chão.
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
Venta
terça-feira, 20 de setembro de 2011
rapidinhas
Em tanto tango
Costura retalhos
Dessa vida maluca.
É tanta textura
Tintas e formas e bolhas
Tolas de tão sérias
Amigas de tão mudas
Lindas.
O sabor dos passos
Podem crer
Meus amigos
Está ao alcance
Da língua."
- Felícia Alves -
quinta-feira, 21 de julho de 2011
Sentado
quinta-feira, 16 de junho de 2011
A onça preta pintada e a menininha que não dormia
e a noite tava gelada.
A coberta era curta
e os pezinhos ficavam de fora.
Terceira noite que dormia num quarto só seu,
terceira noite que não dormia quase nada.
A solidão não era o único motivo das madrugadas em claro.
O que assustava mesmo a menina ruivinha era o grito da onça preta pintada.
Quando a noite caía,
os ventos dos morros do vale desciam pelas paredes de pedra e por entre as plantações assoviavam uma música friiia fria.
Então a onça preta pintada gritava e gritava, lá pro meio da floresta, no lado mais escuro da fazenda.
O grito corria por todos os lados, rebatia no rio, subia nas árvores, espantava as capivaras e as cabras, acordava os cachorros e entrava no quarto da menininha, pela janela.
Ela ficava toda assustada, sentia um arrepio pelo corpo e se escondia embaixo das cobertas.
Noite após noite aquela agonia se repetia:
A escuridão gelada aparecia,
a onça gritava,
a menininha tremia.
Na décima noite a menininha já não aguentava mais.
Vendo que do jeito que tava não poderia ficar e que do jeito que tava nada iria mudar,
resolveu fazer diferente.
Ao ouvir o primeiro grito da onça preta pintada
a menininha levantou de sua cama enrolada na coberta,
colocou seu chinelinho e saiu da casa.
Caminhou pela noite escura, pela grama gelada, pelas plantações, pela beira do rio e da estrada de terra.
Só parou quando chegou na frente da floresta, de onde vinham os gritos medonhos da onça.
A menininha tremia e seus olhinhos não piscavam,
lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto.
Com o mato já na altura dos joelhos, o gelo subindo pelas pernas, o medo daqueles sons e daquele escuro todo, a menina soltou um berro rouco lá do fundo do seu peito:
- AAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!
A onça começou a dar outro grito mas a menina a interrompeu, com outro berro:
- AAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHH!!!!!!
Por algum tempo permaneceram assim,
a onça gritando lá do meio da floresta e a menininha berrando, chorando, enrolada no cobertor.
Silêncio
Silêncio
Ventos
Soluços
E nariz escorrendo
Silêncio.
Logo a menininha já pode avistar os olhos brilhantes da onça se aproximando.
Era um animal forte, com garras em forma de curva e as orelhas pontudas como uma flecha.
Não era muito grande, provavelmente também era um filhote.
Suas feições não eram das mais amigáveis, mostrava os dentes e caminhava com um andar desconfiado.
Paralisada, a menininha fez uma coisa que nem ela mesma entendeu direito:
Levantou um braço e estendeu a mão, em direção a onça preta pintada.
O animal foi se aproximando......
se aproximando........
se aproximando cada vez mais!!
Foi chegando mais perto....
mais perto......
tão pertinho!!
Começou a farejar a ponta dos dedos da menina, que permanecia com o braço esticado e incapaz de mover um músculo no corpo.
A onça foi se aproximando, roçou o focinho pelos dedos da menininha e fez uma coisa que ninguém entendeu direito:
Começou a ronronar! Ficou toda mansa e começou a passar a cabeçona pela mãozinha da menina, que por sua vez começou a sorrir, fazendo carinho nela.
Em alguns instantes as duas já estavam bem relaxadas, o medo tinha ido embora e o frio nem tava mais tão gelado assim.
A onça preta pintada brincava com a menina, passando por baixo do seu braço, lambendo o cobertor.
A menina sentia cócegas por causa dos pelos da onça e soltava gostosas gargalhadas!
A duas brincaram e brincaram até cansar.
Acabaram dormindo abraçadas, ali, no meio do mato alto, dividindo o pequeno cobertor.
Foi uma ótima noite de sono,
assim como todas as outras que vieram depois dessa.
Dormir é muito bom.
terça-feira, 14 de junho de 2011
sem título
Vendaval que gostaria de ser gentil
Meio desastrado
Involuntariamente forte
Fruto das tantas coisas que se enrolam uma nas outras
Muda as energias de lugar
Pra não ficar tudo como está ou foi
É jogo de cintura
Malemolência em tempestade
Samba e prosa da rebelião.
sexta-feira, 10 de junho de 2011
secreta
Fui parar no Teatro Amazonas.
O guarda que ficava na porta para evitar a entrada de visitantes fora de hora não estava lá.
Entrei,
claro.
Já tinha passeado por lá,
mas só durante espetáculos ou com algum guia chato falando muita coisa chata sobre borracha e outras coisas chatas.
Entrei e o silêncio ecoava,
os pilares adornados estavam mudos,
os quadros e afrescos espiavam,
fingindo-se de mortos.
Entrei na sala principal de espetáculos,
levantando pesadas cortinas de veludo vermelho.
Um piano tímido, meio bêbado,
começou a passear nos meus ouvidos.
O som parecia vir dos interiores das paredes,
do alto dos camarotes vazios,
dos corredores de cadeiras enfileiradas.
Fui caminhando pelo longo tapete, apreciando os lustres enormes,
a decoração cheia de curvinhas,
as pinturas e os cheiros antigos.
Cheguei perto do palco
e as notas do piano me chamavam mais altas, mais intensas.
Aquela melodia era um mistério pedindo atenção.
Devagarinho,
dei a volta no palco e entrei numa pequena passagem que,
para mim,
era secreta.
Fui parar num salão escuro,
todo entrecortado por longas cortinas pretas
que dificultavam a compreensão do espaço.
O som do piano belamente principiante tomava conta dos meus sentidos
e por ele fui guiado.
Após alguns passos,
logo vi.....
Em meio a escuridão,
numa clareira de luz amarelada,
lá estava uma inspirada senhora.
Vestido e cabelos brancos,
leves, sem peso.
Descalça
ela dançava e fazia amplos gestos com os braços,
olhos fechados, boca entreaberta,
ditando a melodia e o compasso da música que pairava.
Na sua frente, uma jovem mulher sentada ao piano de cauda.
Ela tinha umas tranças bonitas no cabelo e um olhar esforçado,
tentando traduzir em música os movimentos e expressões da senhora inspirada.
Fiquei observando aquela cena por alguns minutos,
sem que elas percebessem minha presença.
Depois,
saí com o mesmo cuidado com que cheguei,
e meus sentidos demoraram a voltar para a rotina.
Uma hora ou outra eles voltaram,
já era hora do trabalho.
domingo, 5 de junho de 2011
filhos pais paredes e árvores
Cubos. Isso, cubos. As crianças são criadas para se transformarem em úteis cubos de aço, com suas arestas de medidas matematicamente calculadas e conhecidas, com os ângulos perfeitamente retos. Suas faces são lisas, sem textura, uma igual a outra, simétricas e entediantes. Pra que? Ora, o Pink Floyd já respondeu faz tempo. Assim como todos nós, as crianças são apenas "another brick on the wall". E para se encaixar perfeitamente nessa parede, formar uma estrutura sólida e imutável, nada melhor do que tijolos perfeitos, rigorosamente silenciosos e previsíveis, úteis, sem imaginação, sem poder de criação ou tempo para a vadiagem.
Dentro desse contexto, gosto de imaginar que um dia criarei o meu filho para ele ter a força de ser um "desajustado", feliz em sua unicidade, poderoso em sua capacidade de criar a sua realidade. Gosto de imaginar que não será em nada parecido com um cubo, e sim com uma árvore. Uma bela e assimétrica árvore, com seus múltiplos galhos apontando para os vários cantos do céu, uma profunda raiz sensível em captar os nutrientes da terra, um caule com as texturas mais variadas. Seus frutos serão verdes, roxos, grandes, minúsculos, flores, folhas, cantos, risos, samba!
Cultivemos a potência infantil dos olhares do mundo.
vovó
minha vó foi esquecendo
cigarros acesos nos cinzeiros, nas quinas de mesa e nos parapeitos das janelas da cozinha.
Esquecia eles lá e continuavam queimando,
formando um longo cilindro de cinzas,
marcando a madeira ou tingindo as bordas dos azulejos amarelados.
Era tudo culpa da berinjela no forno,
da roupa na máquina,
da pequenina bisneta que vinha experimentar o novo coletinho de tricô que a vó fazia.
Com o passar do tempo
minha vó foi esquecendo
e eu jamais deixarei de lembrar.
sexta-feira, 3 de junho de 2011
efêmero
agradeço às nuvens pelas rugosidades da terra.
Agradeço ao fogo pelas cicatrizes
que me lembram do caminho percorrido até o presente momento de respiração desenfreada.
Agradeço ao deus Efêmero, pai do riso e do instante,
que doa sua prole em nome da beleza mais profunda que existe.
quinta-feira, 19 de maio de 2011
Conservemos nosso parafuso solto
pois não somos máquinas para funcionar sob rígidas normas de qualidade.
Conservemos nosso parafuso solto
pois nossas idéias e sentimentos são maiores do que qualquer exigência de comportamento matemático.
Conservemos nosso parafuso solto
para não esquecermos da nossa condição de bicho que come, dorme, trepa, fareja e rosna.
Conservemos nosso parafuso solto
para não esquecermos que não somos feitos de parafuso algum:
O que rola aqui é uma bomba de sangue grosso e um cérebro capaz de perceber o universo.
O Mar e o Vento
O mar e o vento
Filhos de mães distintas
Fazem movimentos irmãos.
Um não nega o outro:
No mar existem bolhas,
No vento existem gotas.
Eles vão e vem,
Só por ir e vir,
E nessa brincadeira a vida brota.
sexta-feira, 13 de maio de 2011
momento
estávamos na sala.
Eu imitava o Ed Motta
e meu irmão acompanhava no violão.
Meu pai gargalhava,
só de cueca e camiseta,
com uma xícara de café nas mãos.
Esse momento não cabe no oceano.
sem as palavras
com os olhos dobrados pelo cansaço
abro os braços e aperto-o por alguns instantes.
As vezes pergunto como foi o dia e se está tudo bem,
mas não precisaria.
Nenhuma pergunta e nenhuma resposta
poderiam dizer o que dizem seus olhos cansados
e o meu abraço de filho.
quinta-feira, 28 de abril de 2011
terça-feira, 26 de abril de 2011
ray charles e meu pai
é fera.
fera que chora em teclas
sorri em gritos
pede perdão a georgia com um sopro ao final da estrofe.
em alguns momentos do seu show ele não se aguenta
se abraça e faz carinhos no próprio rosto.
as letras transbordam
ele sabe o que fala
ele é o que canta
o piano é seu jardim.
olho para o lado e o que vejo não é uma multidão
não estou num show, estou numa sala.
o dvd que rola na tela é o do ray.
assisto junto ao meu pai.
olho para o lado e o que vejo não é uma multidão.
vejo meu pai....
óculos tortos....
olhos vermelhos....
brotando lágrimas.....
viu?
meu coração não é o que é por acaso.
domingo, 24 de abril de 2011
A gota de mel no azedo do limão
eu soube
o silêncio.
tava tudo lá....
sendo.....
vibrando....
porque é isso que acontece
existir é o grande lance.....
e compartilhar essa fagulha
vê-la refletida em olhos que nos olham
é o gesto mais bonito que se pode conceber
é a resposta que pensamento algum pode elaborar
é a gota de mel no azedo do limão
é Amar.
domingo, 17 de abril de 2011
aprendizado
comecei a ver
apesar de já enchergar muito tempo antes disso.
Em algum lugar do passado
pude perceber o valor da minha vida
a riqueza dos nossos dias
o milagre que é viver.
Em algum lugar do passado
foi-me apresentada a dor
como o melhor aviso de que os momentos calmos e os instantes de riso
são, sem mais nem menos, o tão falado paraíso.
Em algum lugar do passado
aprendi isso tudo.
Portanto, não posso esquecer do que já me foi ensinado.
Às vezes é difícil lembrar, eu sei, é preciso muito força.
Por isso penso poesia......
Ser poeta, para mim, é não esquecer
para continuar aprendendo.
quinta-feira, 14 de abril de 2011
fazer ver
Tentar ser o portador da Chave para uma Porta é subestimar a complexidade do outro, é subestimar o caminho que nós mesmos percorremos para chegar onde estamos e pensar o que pensamos. Não somos portadores de chaves, somos peças ativas no processo de descoberta pessoal de cada indivíduo com o qual nos relacionamos.
Às vezes, muitas vezes, o melhor que podemos fazer é estar ao lado, conversar sem propósito, passear por ai.
terça-feira, 12 de abril de 2011
"beleza"
Acho estranha a "beleza" de hoje em dia.
Gosto da pele cheia de coisinhas, covinhas assimétricas, marcas da complexidade humana.
O que há para se descobrir numa superfície perfeitamente lisa? Se vejo uma parte já sei como é todo o resto. Coisa chata.
Mulheres que fazem muita plástica ficam parecendo..............plástico! Há!
Maquiagem também é uma coisa traiçoeira. As vezes eu penso "hmm se eu tivesse um espanador pra ver o que tem debaixo dessa poeira toda!" Na verdade acabei de pensar nisso, e achei engraçado.
Eu acho lindo mulher quando acorda, principalmente quando a noite foi boa e o dia que nasce não contém obrigações. O rosto desperta ainda com aquele ar de sonho, os olhos ficam com preguiça de piscar e os lábios pouco se esforçam para assoprar algumas palavras.
Alguns caras não tem essa sorte. Suas amantes acordam antes deles para tirarem todo esse brilho. O cara acorda e lá esta: uma boneca inflável com pele de plástico, cabelos organizados em prateleiras, lábios cheirando a morango sintético e os olhos estalados contornados por cílios de fita isolante.
segunda-feira, 11 de abril de 2011
Declaração de amor de um menino do sítio
Eu sô um pardalzin......
Somo tudo passarin.....
Bóra voá mais eu?!
quarta-feira, 6 de abril de 2011
deixa
O vento levou e ela pousou nos cabelos de minha vó, que fazia tricô no jardim.
Quando fui removê-la vovó retrucou, sem olhar:
- Deixa ela ai, deixa.....
terça-feira, 5 de abril de 2011
aahh...
a beleza dos dias....
se eu fosse menos recatado choraria de alegria....
pobres são aqueles que precisam de fogos de artifício para sorrir maravilhados.
sim, sou criança, brinco aos montes numa poça de barro.
você acha isso chato?
coitado.
Tragédia
Beija-flor perdido na tourada.
Buscando um copo daquele mel oferecido
Em meio aos gritos da arena ensanguentada.
Então é isso....
Foi-se o mel,
Acabou-se a estrada.
Beija-flor sentou-se sobre o chifre do animal e de lá não mais saiu......
Golpe de espada.
segunda-feira, 4 de abril de 2011
depois de todas as pesquisas
depois de todas as equações, projetos, descobertas
depois de toda a ciência, história, literatura
depois de todos os protestos, manifestos, greves, crises
depois de todos os argumentos, palavrões, debates, monografias
depois de todas as bíblias, rezas, sermões, mandamentos
depois de todo o medo, angústia, dúvida, raiva, horror
depois de tudo e, portanto, antes de tudo:
sossego.
quarta-feira, 30 de março de 2011
Um dia é uma história
CAPÍTULO 1 - Começa o dia
Quarto escuro. Um pálido azul transborda pelas arestas da janela acortinada. Linguinhas geladas de vento orvalhado roçam em pés e canelas estirados sobre o colchão de palha de milho desfiada. O distante canto do galo desce a pequena colina, passa por entre as madeiras escuras do curral, bate no balde amassado do poço e junto ao vento adentra o quarto de Juvenal. É o sinal, mais um dia começa no sítio.
Juvenal não é moço nem velho. Tem peso, crenças, barba e uma unha encravada no pé esquerdo. Gosta de bucho ensopado, espingarda e viola. Seu trabalho é seu sítio. Quando tem tempo faz queijo, coalhada e licor de figo ou jabuticaba. Vende essas coisas pro Dito, o dono da venda no centro da Vila Esmeralda.
Joga os pesões pra fora da cama, carrega a cabeça nos ombros e senta com as mãos entre as pernas. O tapete de pano não está onde deveria, os pés encontram o chão de cimento queimado e Juvenal suspira .......“Pitoco............”.
Levanta. Não anda. Escorre a mão pela cara.
Agora sim, uma perna avança, depois a outra. Desliza a cortina e tudo está onde estava: O poço, o curral, a colina, o galinheiro. Juvenal grita:
- Pitoco! Acorda vagabundo!
E cospe pela janela.
Juvenal abre o armário de madeira sem trato e de dentro tira seu macacão surrado de todos os dias. Precisa de uma boa lavada.
Juvenal veste o macacão por cima do pijama inteiriço e calça seu par de botas molengas. Sai do quarto, passa pela cozinha quadrada e sai da casa, em direção ao poço. O ar está bem fresco, faz arder um pouco as narinas, e a grama molharia suas meias se ele estivesse usando alguma.
Enquanto caminha Juvenal vai tirando as melecas do rosto, sem pressa. Chega ao poço, corre a corda pelas mãos e desce, também sem pressa alguma, o balde até a água. O balde enche e Juvenal puxa. O balde pesa e a corda grita na roldana. Pitoco percebe. Esse é o sinal de um novo dia para ele, e não o canto do galo.
- Aah......tava na hora...... – resmunga Juvenal
Pitoco vem correndo, se apóia no poço e olha com a língua de fora para o dono. “Bom dia!”, ele diz com um latido, e olha pra baixo, admirando o balde subir cheio d’água.
sexta-feira, 25 de março de 2011
Lembranças do Sítio
"Pó!' pra lá
"Pó?!" pra cá.
As vezes, quando não estão cutucando o chão, levantam a cabeça e ficam com o bico aberto, fazendo olhar de psicopata em surto.
E os galos então, tão sutis!
Quando querem traçar uma galinha vão que nem uma flecha gorda pra cima da coitada.
A maioria delas foge por vários metros.
Algumas tem preguiça de correr, já deitam no chão e falam "vamos acabar logo com isso vai...".
terça-feira, 22 de março de 2011
Velho Limoeiro
saiu um canto.
depois de algum balançar dos galhos
apareceu de trás de três limões enferrujados
um passarinho todo molhado.
chamava alguém que não o ouvia.
cantava e cantava ao lado de um lago esquecido,
onde os sons mergulhavam na água turva ou ricocheteavam em velhas latas de tinta.
sexta-feira, 18 de março de 2011
Belezura
Os poemas já estão todos escritos em uma única estrofe universal cujas entrelinhas temos o privilégio de poder chamar de nossas vidas.
Em forma de flores e pezinhos de mulher temos ao alcance das mãos e dos olhos uma fonte de inspiração incessante, uma verdade que é sem porquês, um riso que não precisa de dentes ou lábios para rir do que não pode ser escrito ou ensinado.
Se for para resumir toda essa belezura em uma palavra, arriscaria um chavão: Deus.
Padres não deveriam existir, apenas poetas.
Mistura
Cheiro de óculos
Volúpia de alçapão.
Tesão das estrelas
Cheiro de curva
Oceano caramelizado com uma pitada de limão.
Bagaço de amor
Sabor de agulha
Uma mãe de algodão com um terço de berço nas mãos.
Manaus
O cimento e o asfalto avançam para que os "civilizados" que aqui chegam não sujem os pés no chão.
Do alto da sacada vejo homens de vermelho, azul e capacetes
Levantando torres, muros, palacetes
Quebrando pedras, martelando tábuas, corrigindo corre-mãos.
Vejo punhados de um denso verde apertados entre as construções,
eles parecem contar histórias.
Por lá já passaram onças, micos, índios e caças.
Sangue, seiva, ninhos e cantos de pássaros.
Hoje, tubulação.
Como é intenso e contraditório o prazer de estar aqui.
quarta-feira, 9 de março de 2011
cantarolando
não quero que ela fique triste.
levo flores todas as manhãs, amarradas com capim cidreira
banana amaçada com aveia e o início de uma musiquinha improvisada.
enquanto o mar for meu
lavo os pratos com prazer.
carrego os sonhos e ouço os medos só pra ela ficar descalça.
terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
Cata-vento
- Rubem Alves -
quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
mãe
Não cheguei a conhecê-la direito.
Quando ela transformou-se em estrela minha cabeça era nova demais,
egoísta demais,
e não enchergava nada além da ponta do meu nariz.
Conhecia a mãe que ela era,
mas fiquei longe de saber que pessoa estava por trás disso tudo.
Gostaria de ter conversado sobre seus medos, angústias e ilusões.
Sobre seus desejos profundos,
seus erros mais escabrosos.
Se ela ainda estivesse neste plano eu aprenderia a mecher com a terra e com as sementes
para construir-mos juntos um jardim muito bonito.
Sentaríamos sob a sombra de uma caramboleira e trocaríamos idéias sobre nós e o mundo,
de receitas de doces aos giros da Terra,
passando por Maria Bethânia e cigarros.
O amor que sinto por ela e o amor dela por mim existirá para todo o sempre,
desrespeitando com graça os limites impostos pela existência dos corpos.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
estar
E esse remo nas minhas mãos, pra onde rema?
Que vento é esse que estufa a vela?
Qual mar é esse cuja água nunca é, foi?
Acho que tudo isso é o que menos importa.
Sei que estou nesse barco,
e que a vista para o horizonte é muito bonita.
segunda-feira, 17 de janeiro de 2011
meu vô
Suas rugas escuras,
seus dedos de tijolo,
sua careca lisinha e seus resistentes cabelos negros.
É tão verdadeiro,
tão sereno,
é lindo quando ele fecha a geladeira com um empurrão de bengala.
Ele adora trocar lâmpadas, mecher com fios, cuidar da horta, cozinhar pra gente, pros cachorros, prás galinhas e prás vacas.
Quando nasce uma ninhada de pintinhos é uma delícia. Ele até descreve características particulares de cada um:
Um é mais gordinho,
o outro é tímido,
tem um que é muito guloso!
Outro dia eu tava na mesa da cozinha da nossa casa lá no sítio. Meu vô tava na pia, de frente pra janela.
Comecei a ouvir ele contar baixinho:
- 1....2....3....4....
- 1.....2........3..4........5......
Reparei no que ele estava fazendo e vi que olhava atentamente pela janela. Perguntei:
- Que foi vô?
Ele respondeu:
- Filho da puta......algum gavião deve ter comido um pintinho da ninhada novinha......
E continuou a fazer o que fazia.
Nunca vou me esquecer dele contando, bem baixinho:
- 1......2..........3.........4........
quarta-feira, 12 de janeiro de 2011
um dia de chuva
o ônibus demorou, mas chegou.
dentro dele as pessoas que entraram não tardaram a fechar as janelas,
acho que por medo de serem corroídos pela água ou algo assim.
em pouco tempo o que havia para se respirar era a respiração das outras pessoas,
um ar quente cheio de coisas.
do mundo de fora pouco se via,
a chuva caia , embaçava o parabrisa, os vidros dos lados e os vidros de trás.
passávamos pelo santa felícia,
um bairro onde ainda se joga bola na rua e pipas ainda fazem orquestra acirrada no céu.
mas naquele dia não.
naquele dia chovia e os pássaros da periferia estavam em suas casas.
passando por um descampado gramado, do lado de um parquinho mambembe, avistei algo
através do vidro embaçado.
não acreditei.
surreal.
levantei-me depressa e puxei a cordinha para descer do busão.
aparentemente as outras pessoas não viram o que eu vi.
o ônibus foi embora e eu fiquei na calçada, já ensopado após alguns segundos.
meus olhos eram alvejados pelas gotas da chuva, tive que me esforçar para ver direito.
do outro lado do descampado, perto do parquinho e de um açougue fechado,
estava uma enorme massa amarelada, caminhando e farejando a terra e a grama.
seus passos eram lentos e firmes, sua respiração gerava uma fumaça espessa, sua juba molhada
pesava sobre os ombros.
dou um passo, piso numa folha e suas orelhas e fuça não falham em detectar minha presença
rapidamente.
seu pescoço encaixa-se sobre a coluna, sua cabeçorra vira em minha direção e seus olhos fisgam
os meus como quem pergunta "Quem vem lá?"
Congelei, minhas roupas ficaram duras, meu pé entrou no chão.
Era tão lindo e assustador.
O enorme animal começou a andar em minha direção e após alguns passos começou uma corrida de caça.
Cobriu vários metros numa velocidade absurda e, quando percebi, já estava bem perto de mim.
Pensei: "É isso, um ataque de um leão!".
O bicho veio pra cima de mim e me jogou no chão com um empurrão tonelada.
Seus dentes ficaram a poucos centímetros do meu rosto,
seu bafo esquentava meu nariz.
Fechei os olhos, paralisado, petrificado.
Após alguns instantes, eu ainda ouvia o barulho da chuva.
Pela pressão sobre meu peito sabia que ele ainda estava lá.
Abri os olhos lentamente e lá estava ele, olhando fixamente nos meus olhos.
Quem é você? - ele me perguntou.
Sou Raoni, filho de Francisco e Maria Cecília. - respondi
Silêncio
E você, quem é? - perguntei
O enorme leão, acreditem, desfranziu as sobrancelhas e deu um belo sorriso.
Quem sou eu? - retrocou
Nesse momento ele saiu de cima do meu corpo e ficou olhando para a chuva, sentado, contemplativo.
Virou-se para mim e disse:
"Meu filho, eu sou a Poesia.
Fico muito feliz de ter sido notado por você.
Normalmente perambulo pelas ruas e a maioria das pessoas não me vê.
Fico vagando, perdido, cheirando os restos de grama.
Continue com seu coração esperto, pois existem outras entidades caminhando por ai.
Algumas delas fazem muito mal às pessoas e mesmo assim são notadas e lembradas a todo instante.
Eu não entendo.
Mas, no momento, estou feliz de ter me encontrado com você.
Posso continuar minha viagem em paz"
O leão se levantou, deu mais um sorriso, e começou a caminhar por entre a chuva.
Depois de alguns passos, desapareceu.