quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

um dia de chuva

eu tava voltando do trabalho. chovia.

o ônibus demorou, mas chegou.

dentro dele as pessoas que entraram não tardaram a fechar as janelas,

acho que por medo de serem corroídos pela água ou algo assim.

em pouco tempo o que havia para se respirar era a respiração das outras pessoas,

um ar quente cheio de coisas.

do mundo de fora pouco se via,

a chuva caia , embaçava o parabrisa, os vidros dos lados e os vidros de trás.

passávamos pelo santa felícia,

um bairro onde ainda se joga bola na rua e pipas ainda fazem orquestra acirrada no céu.

mas naquele dia não.

naquele dia chovia e os pássaros da periferia estavam em suas casas.

passando por um descampado gramado, do lado de um parquinho mambembe, avistei algo

através do vidro embaçado.

não acreditei.

surreal.

levantei-me depressa e puxei a cordinha para descer do busão.

aparentemente as outras pessoas não viram o que eu vi.

o ônibus foi embora e eu fiquei na calçada, já ensopado após alguns segundos.

meus olhos eram alvejados pelas gotas da chuva, tive que me esforçar para ver direito.

do outro lado do descampado, perto do parquinho e de um açougue fechado,

estava uma enorme massa amarelada, caminhando e farejando a terra e a grama.

seus passos eram lentos e firmes, sua respiração gerava uma fumaça espessa, sua juba molhada

pesava sobre os ombros.

dou um passo, piso numa folha e suas orelhas e fuça não falham em detectar minha presença

rapidamente.

seu pescoço encaixa-se sobre a coluna, sua cabeçorra vira em minha direção e seus olhos fisgam

os meus como quem pergunta "Quem vem lá?"

Congelei, minhas roupas ficaram duras, meu pé entrou no chão.

Era tão lindo e assustador.

O enorme animal começou a andar em minha direção e após alguns passos começou uma corrida de caça.

Cobriu vários metros numa velocidade absurda e, quando percebi, já estava bem perto de mim.

Pensei: "É isso, um ataque de um leão!".

O bicho veio pra cima de mim e me jogou no chão com um empurrão tonelada.

Seus dentes ficaram a poucos centímetros do meu rosto,

seu bafo esquentava meu nariz.

Fechei os olhos, paralisado, petrificado.



Após alguns instantes, eu ainda ouvia o barulho da chuva.

Pela pressão sobre meu peito sabia que ele ainda estava lá.

Abri os olhos lentamente e lá estava ele, olhando fixamente nos meus olhos.

Quem é você? - ele me perguntou.

Sou Raoni, filho de Francisco e Maria Cecília. - respondi

Silêncio



E você, quem é? - perguntei

O enorme leão, acreditem, desfranziu as sobrancelhas e deu um belo sorriso.

Quem sou eu? - retrocou

Nesse momento ele saiu de cima do meu corpo e ficou olhando para a chuva, sentado, contemplativo.

Virou-se para mim e disse:

"Meu filho, eu sou a Poesia.

Fico muito feliz de ter sido notado por você.

Normalmente perambulo pelas ruas e a maioria das pessoas não me vê.

Fico vagando, perdido, cheirando os restos de grama.

Continue com seu coração esperto, pois existem outras entidades caminhando por ai.

Algumas delas fazem muito mal às pessoas e mesmo assim são notadas e lembradas a todo instante.

Eu não entendo.

Mas, no momento, estou feliz de ter me encontrado com você.

Posso continuar minha viagem em paz"


O leão se levantou, deu mais um sorriso, e começou a caminhar por entre a chuva.

Depois de alguns passos, desapareceu.

2 comentários:

  1. Ni!Eu adorei esse post. Fiquei realmente curiosa quando você começou a falar do leão e adorei como você foi descrevendo o seu reencontro com a poesia depois de um dia de trabalho. Às vezes nos perdemos dentro do sistema e começamos a deixar de olhar para as pequenas coisas. Ou quando paramos para ver algo simples como a força da chuva e do vento, nos sentimos estranhos, como se fosse uma perda de tempo, como se ninguém mais fizesse isso.
    rs
    gostei

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  2. orra flor fico feliz q tenha gostado! o grande lance é que essas não são pequenas coisas. são as maiores coisas! acredito que se todos parassem para ouvir o que a chuva e os ventos tem para dizer sobre nós mesmos não existiria essa busca generalizada por uma satisfação egoísta e sem sentido. bjo grande!

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