quinta-feira, 16 de junho de 2011

A onça preta pintada e a menininha que não dormia

Uma menininha tentava dormir

e a noite tava gelada.

A coberta era curta

e os pezinhos ficavam de fora.

Terceira noite que dormia num quarto só seu,

terceira noite que não dormia quase nada.

A solidão não era o único motivo das madrugadas em claro.

O que assustava mesmo a menina ruivinha era o grito da onça preta pintada.

Quando a noite caía,

os ventos dos morros do vale desciam pelas paredes de pedra e por entre as plantações assoviavam uma música friiia fria.

Então a onça preta pintada gritava e gritava, lá pro meio da floresta, no lado mais escuro da fazenda.

O grito corria por todos os lados, rebatia no rio, subia nas árvores, espantava as capivaras e as cabras, acordava os cachorros e entrava no quarto da menininha, pela janela.

Ela ficava toda assustada, sentia um arrepio pelo corpo e se escondia embaixo das cobertas.

Noite após noite aquela agonia se repetia:

A escuridão gelada aparecia,

a onça gritava,

a menininha tremia.

Na décima noite a menininha já não aguentava mais.

Vendo que do jeito que tava não poderia ficar e que do jeito que tava nada iria mudar,

resolveu fazer diferente.

Ao ouvir o primeiro grito da onça preta pintada

a menininha levantou de sua cama enrolada na coberta,

colocou seu chinelinho e saiu da casa.

Caminhou pela noite escura, pela grama gelada, pelas plantações, pela beira do rio e da estrada de terra.

Só parou quando chegou na frente da floresta, de onde vinham os gritos medonhos da onça.

A menininha tremia e seus olhinhos não piscavam,

lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto.

Com o mato já na altura dos joelhos, o gelo subindo pelas pernas, o medo daqueles sons e daquele escuro todo, a menina soltou um berro rouco lá do fundo do seu peito:

- AAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!

A onça começou a dar outro grito mas a menina a interrompeu, com outro berro:

- AAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHH!!!!!!

Por algum tempo permaneceram assim,

a onça gritando lá do meio da floresta e a menininha berrando, chorando, enrolada no cobertor.

Silêncio

Silêncio

Ventos

Soluços

E nariz escorrendo

Silêncio.

Logo a menininha já pode avistar os olhos brilhantes da onça se aproximando.

Era um animal forte, com garras em forma de curva e as orelhas pontudas como uma flecha.

Não era muito grande, provavelmente também era um filhote.

Suas feições não eram das mais amigáveis, mostrava os dentes e caminhava com um andar desconfiado.

Paralisada, a menininha fez uma coisa que nem ela mesma entendeu direito:

Levantou um braço e estendeu a mão, em direção a onça preta pintada.

O animal foi se aproximando......

se aproximando........

se aproximando cada vez mais!!

Foi chegando mais perto....

mais perto......

tão pertinho!!

Começou a farejar a ponta dos dedos da menina, que permanecia com o braço esticado e incapaz de mover um músculo no corpo.

A onça foi se aproximando, roçou o focinho pelos dedos da menininha e fez uma coisa que ninguém entendeu direito:

Começou a ronronar! Ficou toda mansa e começou a passar a cabeçona pela mãozinha da menina, que por sua vez começou a sorrir, fazendo carinho nela.

Em alguns instantes as duas já estavam bem relaxadas, o medo tinha ido embora e o frio nem tava mais tão gelado assim.

A onça preta pintada brincava com a menina, passando por baixo do seu braço, lambendo o cobertor.

A menina sentia cócegas por causa dos pelos da onça e soltava gostosas gargalhadas!

A duas brincaram e brincaram até cansar.

Acabaram dormindo abraçadas, ali, no meio do mato alto, dividindo o pequeno cobertor.

Foi uma ótima noite de sono,

assim como todas as outras que vieram depois dessa.

Dormir é muito bom.

terça-feira, 14 de junho de 2011

sem título

Furacão que anda

Vendaval que gostaria de ser gentil

Meio desastrado

Involuntariamente forte

Fruto das tantas coisas que se enrolam uma nas outras

Muda as energias de lugar

Pra não ficar tudo como está ou foi

É jogo de cintura

Malemolência em tempestade

Samba e prosa da rebelião.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

secreta

Num rolê pós almoço

Fui parar no Teatro Amazonas.

O guarda que ficava na porta para evitar a entrada de visitantes fora de hora não estava lá.

Entrei,

claro.

Já tinha passeado por lá,

mas só durante espetáculos ou com algum guia chato falando muita coisa chata sobre borracha e outras coisas chatas.

Entrei e o silêncio ecoava,

os pilares adornados estavam mudos,

os quadros e afrescos espiavam,

fingindo-se de mortos.

Entrei na sala principal de espetáculos,

levantando pesadas cortinas de veludo vermelho.

Um piano tímido, meio bêbado,

começou a passear nos meus ouvidos.

O som parecia vir dos interiores das paredes,

do alto dos camarotes vazios,

dos corredores de cadeiras enfileiradas.

Fui caminhando pelo longo tapete, apreciando os lustres enormes,

a decoração cheia de curvinhas,

as pinturas e os cheiros antigos.

Cheguei perto do palco

e as notas do piano me chamavam mais altas, mais intensas.

Aquela melodia era um mistério pedindo atenção.

Devagarinho,

dei a volta no palco e entrei numa pequena passagem que,

para mim,

era secreta.

Fui parar num salão escuro,

todo entrecortado por longas cortinas pretas

que dificultavam a compreensão do espaço.

O som do piano belamente principiante tomava conta dos meus sentidos

e por ele fui guiado.

Após alguns passos,

logo vi.....

Em meio a escuridão,

numa clareira de luz amarelada,

lá estava uma inspirada senhora.

Vestido e cabelos brancos,

leves, sem peso.

Descalça

ela dançava e fazia amplos gestos com os braços,

olhos fechados, boca entreaberta,

ditando a melodia e o compasso da música que pairava.

Na sua frente, uma jovem mulher sentada ao piano de cauda.

Ela tinha umas tranças bonitas no cabelo e um olhar esforçado,

tentando traduzir em música os movimentos e expressões da senhora inspirada.

Fiquei observando aquela cena por alguns minutos,

sem que elas percebessem minha presença.

Depois,

saí com o mesmo cuidado com que cheguei,

e meus sentidos demoraram a voltar para a rotina.

Uma hora ou outra eles voltaram,

já era hora do trabalho.

domingo, 5 de junho de 2011

filhos pais paredes e árvores

Vejo pais que passam muito tempo mostrando aos filhos o que não podem fazer e esquecem do espaço para as coisas que os pequenos são capazes de fazer. São as mentes podadas dos pais que se esforçam em podar a mente do filho, restringindo suas habilidades e sensibilidades em nome de um conceito de segurança que é uma gaiola e um modelo de comportamento doente, imposto por um contexto social que enaltece a objetividade e a utilidade em detrimento do devaneio e da imaginação.

Cubos. Isso, cubos. As crianças são criadas para se transformarem em úteis cubos de aço, com suas arestas de medidas matematicamente calculadas e conhecidas, com os ângulos perfeitamente retos. Suas faces são lisas, sem textura, uma igual a outra, simétricas e entediantes. Pra que? Ora, o Pink Floyd já respondeu faz tempo. Assim como todos nós, as crianças são apenas "another brick on the wall". E para se encaixar perfeitamente nessa parede, formar uma estrutura sólida e imutável, nada melhor do que tijolos perfeitos, rigorosamente silenciosos e previsíveis, úteis, sem imaginação, sem poder de criação ou tempo para a vadiagem.

Dentro desse contexto, gosto de imaginar que um dia criarei o meu filho para ele ter a força de ser um "desajustado", feliz em sua unicidade, poderoso em sua capacidade de criar a sua realidade. Gosto de imaginar que não será em nada parecido com um cubo, e sim com uma árvore. Uma bela e assimétrica árvore, com seus múltiplos galhos apontando para os vários cantos do céu, uma profunda raiz sensível em captar os nutrientes da terra, um caule com as texturas mais variadas. Seus frutos serão verdes, roxos, grandes, minúsculos, flores, folhas, cantos, risos, samba!

Cultivemos a potência infantil dos olhares do mundo.

vovó

Com o passar do tempo

minha vó foi esquecendo

cigarros acesos nos cinzeiros, nas quinas de mesa e nos parapeitos das janelas da cozinha.

Esquecia eles lá e continuavam queimando,

formando um longo cilindro de cinzas,

marcando a madeira ou tingindo as bordas dos azulejos amarelados.

Era tudo culpa da berinjela no forno,

da roupa na máquina,

da pequenina bisneta que vinha experimentar o novo coletinho de tricô que a vó fazia.



Com o passar do tempo

minha vó foi esquecendo

e eu jamais deixarei de lembrar.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

efêmero

Embalado por um céu de novidades

agradeço às nuvens pelas rugosidades da terra.

Agradeço ao fogo pelas cicatrizes

que me lembram do caminho percorrido até o presente momento de respiração desenfreada.

Agradeço ao deus Efêmero, pai do riso e do instante,

que doa sua prole em nome da beleza mais profunda que existe.