quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

mãe

Hoje eu acordei pensando em minha mãe, sentindo-a.

Não cheguei a conhecê-la direito.

Quando ela transformou-se em estrela minha cabeça era nova demais,

egoísta demais,

e não enchergava nada além da ponta do meu nariz.

Conhecia a mãe que ela era,

mas fiquei longe de saber que pessoa estava por trás disso tudo.

Gostaria de ter conversado sobre seus medos, angústias e ilusões.

Sobre seus desejos profundos,

seus erros mais escabrosos.

Se ela ainda estivesse neste plano eu aprenderia a mecher com a terra e com as sementes
para construir-mos juntos um jardim muito bonito.

Sentaríamos sob a sombra de uma caramboleira e trocaríamos idéias sobre nós e o mundo,

de receitas de doces aos giros da Terra,

passando por Maria Bethânia e cigarros.

O amor que sinto por ela e o amor dela por mim existirá para todo o sempre,

desrespeitando com graça os limites impostos pela existência dos corpos.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

estar

Ah mas que barco é esse?

E esse remo nas minhas mãos, pra onde rema?

Que vento é esse que estufa a vela?

Qual mar é esse cuja água nunca é, foi?



Acho que tudo isso é o que menos importa.

Sei que estou nesse barco,

e que a vista para o horizonte é muito bonita.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

acerolas

Olha que beleza! Catei 237 acerolas hoje!

- Seu Milton, meu vô -

meu vô

Não consigo pensar em algo mais belo que meu vô.

Suas rugas escuras,

seus dedos de tijolo,

sua careca lisinha e seus resistentes cabelos negros.


É tão verdadeiro,

tão sereno,

é lindo quando ele fecha a geladeira com um empurrão de bengala.

Ele adora trocar lâmpadas, mecher com fios, cuidar da horta, cozinhar pra gente, pros cachorros, prás galinhas e prás vacas.


Quando nasce uma ninhada de pintinhos é uma delícia. Ele até descreve características particulares de cada um:

Um é mais gordinho,

o outro é tímido,

tem um que é muito guloso!


Outro dia eu tava na mesa da cozinha da nossa casa lá no sítio. Meu vô tava na pia, de frente pra janela.

Comecei a ouvir ele contar baixinho:

- 1....2....3....4....

- 1.....2........3..4........5......

Reparei no que ele estava fazendo e vi que olhava atentamente pela janela. Perguntei:

- Que foi vô?

Ele respondeu:

- Filho da puta......algum gavião deve ter comido um pintinho da ninhada novinha......

E continuou a fazer o que fazia.



Nunca vou me esquecer dele contando, bem baixinho:

- 1......2..........3.........4........

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

um dia de chuva

eu tava voltando do trabalho. chovia.

o ônibus demorou, mas chegou.

dentro dele as pessoas que entraram não tardaram a fechar as janelas,

acho que por medo de serem corroídos pela água ou algo assim.

em pouco tempo o que havia para se respirar era a respiração das outras pessoas,

um ar quente cheio de coisas.

do mundo de fora pouco se via,

a chuva caia , embaçava o parabrisa, os vidros dos lados e os vidros de trás.

passávamos pelo santa felícia,

um bairro onde ainda se joga bola na rua e pipas ainda fazem orquestra acirrada no céu.

mas naquele dia não.

naquele dia chovia e os pássaros da periferia estavam em suas casas.

passando por um descampado gramado, do lado de um parquinho mambembe, avistei algo

através do vidro embaçado.

não acreditei.

surreal.

levantei-me depressa e puxei a cordinha para descer do busão.

aparentemente as outras pessoas não viram o que eu vi.

o ônibus foi embora e eu fiquei na calçada, já ensopado após alguns segundos.

meus olhos eram alvejados pelas gotas da chuva, tive que me esforçar para ver direito.

do outro lado do descampado, perto do parquinho e de um açougue fechado,

estava uma enorme massa amarelada, caminhando e farejando a terra e a grama.

seus passos eram lentos e firmes, sua respiração gerava uma fumaça espessa, sua juba molhada

pesava sobre os ombros.

dou um passo, piso numa folha e suas orelhas e fuça não falham em detectar minha presença

rapidamente.

seu pescoço encaixa-se sobre a coluna, sua cabeçorra vira em minha direção e seus olhos fisgam

os meus como quem pergunta "Quem vem lá?"

Congelei, minhas roupas ficaram duras, meu pé entrou no chão.

Era tão lindo e assustador.

O enorme animal começou a andar em minha direção e após alguns passos começou uma corrida de caça.

Cobriu vários metros numa velocidade absurda e, quando percebi, já estava bem perto de mim.

Pensei: "É isso, um ataque de um leão!".

O bicho veio pra cima de mim e me jogou no chão com um empurrão tonelada.

Seus dentes ficaram a poucos centímetros do meu rosto,

seu bafo esquentava meu nariz.

Fechei os olhos, paralisado, petrificado.



Após alguns instantes, eu ainda ouvia o barulho da chuva.

Pela pressão sobre meu peito sabia que ele ainda estava lá.

Abri os olhos lentamente e lá estava ele, olhando fixamente nos meus olhos.

Quem é você? - ele me perguntou.

Sou Raoni, filho de Francisco e Maria Cecília. - respondi

Silêncio



E você, quem é? - perguntei

O enorme leão, acreditem, desfranziu as sobrancelhas e deu um belo sorriso.

Quem sou eu? - retrocou

Nesse momento ele saiu de cima do meu corpo e ficou olhando para a chuva, sentado, contemplativo.

Virou-se para mim e disse:

"Meu filho, eu sou a Poesia.

Fico muito feliz de ter sido notado por você.

Normalmente perambulo pelas ruas e a maioria das pessoas não me vê.

Fico vagando, perdido, cheirando os restos de grama.

Continue com seu coração esperto, pois existem outras entidades caminhando por ai.

Algumas delas fazem muito mal às pessoas e mesmo assim são notadas e lembradas a todo instante.

Eu não entendo.

Mas, no momento, estou feliz de ter me encontrado com você.

Posso continuar minha viagem em paz"


O leão se levantou, deu mais um sorriso, e começou a caminhar por entre a chuva.

Depois de alguns passos, desapareceu.